Uma Comédia ”sem Moral nenhuma”

“O Autor escreve para se entreter e o mais curioso é afigurar-se-lhe que deve insistir na classificação de COMÉDIA a uma peça na qual há veneno e Morte em cena. Afirmando o Autor que “riu e riu com gosto ainda nas passagens mais trágicas e que COMÉDIA será eternamente.”


17 de outubro de 2009

Género e discurso nesta admirável terriola

Por via do teatro, da narrativa e mesmo da poesia, emerge nas primeiras décadas do século XX um conjunto singular de personagens femininas, dando visibilidade a uma deslocação na estrutura social e nos protocolos da representação artística que vale a pena destacar. Sabina Freire inaugura de certo modo esta galeria de mulheres que, mediante uma espécie de contraste de género, denunciam a pátria como «terriola» preconceituosa e mal frequentada. Esta deriva feminina nem sempre se caracteriza por um sentido unívoco ou claramente emancipatório. Existem diferenças mais ou menos acentuadas entre Sabina Freire (1905), A Leviana (1921) de António Ferro, a Judite que Almada Negreiros anuncia com O Nome de Guerra (1925), a vida marginal da Zilda (1921) de Alfredo Cortez, ou a ambígua «confraternização mental feminista» que antecede o vigésimo matrimónio da Protagonista, em Os Gladiadores (1934), peça em registo grotesco do mesmo autor. Sabina Freire integra portanto este laboratório social, onde deveríamos porventura incluir ainda A Lei do Divórcio que Augusto Lacerda escreveu para o Teatro Nacional, justamente em 1910, ano da aprovação de legislação que viria a reconhecer o direito ao divórcio e igualdade de tratamento entre homem e mulher.
Teixeira-Gomes, como é sabido, assumiu a arte como operador privilegiado da redenção humana. Apreciar significa, antes de tudo, aprender a olhar, dominar a velocidade necessária à incorporação sensível das coisas e dos seres, em movimento lento e contínuo. Eis o que escreve a Columbano: «O primeiro mês da minha viagem foi todo em perpétuo mobile – cinematográfico (…) em todos os ramos das belas-artes e letras o essencial é poder, é saber ver». Apreciar propriamente a vida e a arte configura uma equação que ao tempo haveria de orientar toda uma estratégia de nobilitação posta em marcha pelo patriciado burguês republicano. Acresce que a soberania da arte negava qualquer autoridade à moral, considerada como o maior obstáculo, perante o mesmo Columbano: «O último, o inexpugnável reduto dos inimigos da beleza, aquele onde eles se entrincheiram vitoriosamente, para daí condenar às penas máximas os grandes artistas rebeldes, é a moral».
Ora, a vontade de viver que move a personagem Sabina Freire recusa assim o esteticismo de tipo decadentista e aproxima-se antes da corporeidade livre que a tradição jacobina e vitalista admirava. Casada com Júlio Freire, um poeta lírico de velha cepa lusitana, transplantada de Paris para a rusticidade do Algarve em finais de Oitocentos, Sabina ilustra a referida capacidade de apreciação, mas promove também uma verdadeira inquirição à cultura de chegada, esmiuçando a um tempo o território e as mentalidades que vem encontrar.
Neste processo de inquirição feminina é justo reconhecer que apesar de um ou outro excesso palavroso, mormente em alguns solilóquios, a análise efectuada resistiu notavelmente à prova do tempo. Veja-se, a este propósito, o diálogo entre Sabina e o Doutor Fino sobre a ascensão da figura do médico em Portugal. Além de secularizar o antigo ofício das almas, observamos como em termos históricos o médico se despede por completo do tempo em que «barbeavam e monopolizavam a aplicação dos clisteres», passando a beneficiar em contexto doméstico de um ascendente deveras bacoco: «Implantou-se aqui a hierarquia da doença competindo com a hierarquia social da fortuna e do sangue». Esta referência à mania de falar de doenças metaforiza assim a própria patologia das elites locais, bem como a patologia do espaço público e conversacional. A nação tende à sociabilidade mesquinha da casa de D. Maria Freire, uma provinciana somítica e retrógrada. A este pequeno mundo não faltará sequer um Padre interesseiro, um Ministro artificioso e o baile ao Segundo Acto.
O próprio registo cómico que domina a peça compreende-se melhor no âmbito da pedagogia do riso. A crítica seguramente desejaria ver nesta Sabina o registo sério de uma Hedda Gabler, com quem aliás a personagem partilha autonomia, maquinação e apetência criminosa. No entanto, o mundo boçal e os desmandos retóricos dos conterrâneos legitimam a estratégia risível que Teixeira-Gomes enfatizou nesta comédia em três actos. Não há de facto comicidade fora do que é humano: são vários os momentos nos quais a ironia e a paródia servem o rasteio impiedoso dos costumes e dos hábitos, ou mesmo a redução sarcástica de Epifânio e Augusto César a «excelentíssimos pedaços de asnos». Abundam os momentos de ironia, o cómico de situação, as insinuações hilariantes, além de tiradas melodramáticas provindas de um marido «empapado de luar», incapaz de agir com tino.
O dramaturgo manifesta desta forma um domínio completo sobre o seu meio expressivo e, não raras vezes, revela a percepção metateatral que define o olhar exterior a que tende o risível da comédia: Júlio anda «hamlético», o léxico conceptual contamina o diálogo teatral, insinuam-se «cenas dramáticas» e «tragédias gregas». A linguagem e a estruturação do texto de Teixeira-Gomes precedem a experimentação formal e mimética do modernismo. Neste âmbito, o autor privilegiou claramente o pathos expressivo e a legibilidade da fábula, em função de uma mulher possuída pelo «encanto de viver» a todo o custo, com ou sem venenos adicionais.
Fernando Matos Oliveira

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