Uma Comédia ”sem Moral nenhuma”

“O Autor escreve para se entreter e o mais curioso é afigurar-se-lhe que deve insistir na classificação de COMÉDIA a uma peça na qual há veneno e Morte em cena. Afirmando o Autor que “riu e riu com gosto ainda nas passagens mais trágicas e que COMÉDIA será eternamente.”


30 de outubro de 2009

Sabina Freire - Uma Comédia” sem Moral nenhuma”

O momento
A criação deste espectáculo surge num contexto de circunstâncias muito particulares, tanto para o país como para nós Companhia de Teatro de Braga.
Não se trata apenas de mais uma co-produção com uma outra Companhia. Trata-se de A Escola da Noite, com quem mantemos relações previlegiadas há longos anos, com quem confrontamos ideias e reflexões, afectos, actores e espectáculos. Decidimos nestes dois anos ir mais longe nessas trocas para tentarmos fazer algo de exemplar e urgente no panorama teatral nacional. Mas disso se falará noutro momento deste programa.

Depois, acresce que em 2010 a República comemora 100 Anos e a CTB comemora 30 Anos. Visto com os “olhos da História” a distância temporal não é assim tão grande. (vêm-me à memória o som das palavras ditas um dia pelo dr. Fernando Valle, na sua quinta de Coja, à mesa, depois dum opíparo almoço. Homem integro e Bom, ele SIM Amante da República, que A viu nascer, quase diria a parturiou e por Ela Lutou. “Ó amigo Rui, os portugueses passam a vida a dizer que Portugal é um país velho. Velho?! Como? “São quatro gajos com a minha idade!”, que na altura seriam 101ou 102 anos, apenas.

O tempo
Ora, 30 anos de vida de uma companhia de Teatro em Portugal, corresponde bem a 100 anos de República. E Comemorar estas duas datas, em conjunto com esta outra companhia a partir de um espectáculo construído em cima de um texto, no “mínimo estranho”, escrito por um ex-presidente da República, parece-nos escolha e oportunidade ímpar. Mais ainda se se trata de um ex-presidente que, como intelectual, foi alguém que se posicionou sempre com ” olhos de ver”o País e de que matéria era formada a diversidade caricatural das figurinhas que à sua volta pululavam.
Entendemos estas circunstâncias como um acto de reconhecimento para com o Autor e sua Obra (Sabina Freire); como uma afirmação de cidadania, neste tempos de novo (ou sempre) conturbados de República. A posição destas duas Companhias deve assim ser entendida como um exemplo de afirmação Democrática e de exigência no cumprimento dos valores republicanos, na educação, na cultura e na cidadania.

O texto. A Palavra. Os Actores
E depois há o Texto. E o material com que se faz o espectáculo: A PALAVRA E O ACTOR. E este País! E esse texto foi SABINA FREIRE. E com ele e a partir dele, com os Actores se construiu o espectáculo. Mas a pergunta que aflorou à cabeça de quase todos, logo na primeira leitura, terá sido “mas que peça é esta?” Questão semelhante colocará com o mesmo ar espantardoado, Augusto César na penúltima réplica da peça: Que mulher é esta? Uma “Cantante” responderá Epifânio. Um fantástico texto dramático, direi eu!
Sabemos que não é texto “muito feito nem muito escolhido” quando se fala do teatro português do século XX. Temos conhecimento da dificuldade de o catalogar quanto ao género: Comédia? Tragédia? Farsa? A recensão crítica sobre este único texto de teatro de Teixeira-Gomes é, diria, datada, o que não deslustra, antes acentua a qualidade e perspicácia quer do Autor quer daqueles que sobre ela escreveram (Urbano Tavares Rodrigues, João de Barros, Fialho d’Almeida, José Régio…….

Debruçamo-nos sobre a Obra literária de Teixeira-Gomes e a sua atitude perante ela. Tentando entender a sua peculiar figura de intelectual, de político e de cidadão, mais se adensa o mistério ou estranheza sobre esta Sabina Freire. Parece-nos que conflui nesta peça tudo que do Autor sabemos ou que ele permitiu que soubéssemos e, até mesmo, o que nunca saberemos. Sabina é um objecto literário, dramático, mas é muito mais do que isso. É, certamente o resultado da observação cosmopolita e distanciada a que o Autor se “obrigou” nas múltiplas viagens por essa Europa de início do século XX. Conhecimento feito de “ver e frequentar”A sensação de experimentar os novos ventos que varriam a Europa, nas Artes, na Literatura e no Teatro. E a importância que a mulher nórdica começava a assumir na sociedade. Ele que por lá negociava figos do seu Algarve e que depois por lá se demorava a “ver”as pessoas e os movimentos. Acredito que tenha confrontado então a camponesa desnuda que furtivamente se banhava em bando na ribeira de Bensafrim e cotejado os seios e as curvas das ancas que para si altivamente exibiu, com esses outros bustos e cabeças dessa outra Europa. Aí, terá, porventura o Poeta “sonhado” um novo busto para a “sua República? Mas um Busto com Cabeça. E o modelo escolhido terá sido SABINA! Sim, as personagens femininas de Ibsen, as presenças de Lou Andreas-Salomé ou Anais Nin e de outras que preenchiam os círculos de Paris. A importância de Freud e de Nitzche. E do teatro de Tchekov… Quem escreve Sabina sabe e tem cultura teatral. Quem trabalha este texto, encontra nele “jogos” e referências que não deve ignorar. Para mim, Ibsen. Talvez menos Hedda Gabler e mais Espectros, na relação mãe (srª Alving, sem marido) e o jovem filho (Oswald) pintor, que se aventurou pela Europa do sul e a silenciosa criada Regina. Talvez mais Gaivota de Tchekov, no triângulo vivencial entre Treplev, o jovem escritor, Nina, a jovem e apaixonada actriz e Macha, a silenciosa criada, que tanto o ama e a presença da mãe (sem marido) Arkadina. Ou até, se quisermos, uma referência mais mediterrânica e mais matriarcal: o lado Lorquiano de Maria Freire.

Para uma espécie de sinopse:

Sabina Freire. O espectáculo e os Portugueses
Em Sabina Freire, sejamos claros, estamos numa verdadeira luta de cabeças. E essa luta é uma luta de fêmeas! As mulheres mandam. Os homens fazem parte do universo dos fantoches (o bando, como lhes chama Sabina). Mesmo quando Júlio se atreve a abandonar a dor de cabeça para o confronto derradeiro com Sabina, o resultado é ficar finalmente a conhecê-la.
Se analisado na época em que foi escrita e se analisado hoje, passados quase 100 anos, deslumbramo-nos (se ainda nos soubermos deslumbrar) com o material Sabina, que Teixeira- Gomes nos legou. Nós, portugueses, tão velhos como afirmamos e tão incapazes de nos descobrirmos na modernidade que transportamos. Tão ciosos das nossas vitoriazinhas morais, tão mesquinhos e fanfarrões, tão capazes de cuspir para o ar e tão invejosos da saliva dos vizinhos, “espreitas” profissionais, serventuários sem espinha, intrujões na autoestima e portadores no adn de ontológico sentimento de inferioridade congénito, fomos e somos “vistos à lupa” pela cabeça de Teixeira-Gomes. Continuamos um povo em ruínas, em que o Castelo de Silves como diz Sabina, é “a sua mais nobre ruína, a sua única ruína histórica”, pensa ela, “ nesta região só abundam monumentos e ruínas nos corações e nas almas! E no entanto eu levo daqui a impressão de uma terra luminosa, onde tudo sorri… Se eu a povoasse de novo e a meu jeito podia ser feliz vivendo nela…” é, quiçá, um bom exemplo. Pouco ou nada mudou de relevante entre o tempo da escrita de Sabina e o tempo em que a vamos representar. E aí reside a grandeza do Autor e a pequenez dos “observados”. Por isso Sabina antes da partida dispara ainda “ Excluía a gente velha: crisol do egoísmo sem graça; os padres: e talvez os poetas líricos da espécie do Júlio.”
Fim da espécie de sinopse


impressões
Intrigou-me bastante, durante o processo de criação deste espectáculo, a cabeça do Autor. Passei algumas horas ao longo destes dois meses a “olhar” as suas fotos. Não as de infância mas as mais maduras que alguns já chamaram de caducas. Na ânsia de encontrar uma respiração do texto e do Autor, a partir duma imagem do corpo e da imagética que a Palavra, que se nota sempre escolhida, pode produzir. Justificações para a busca de um trabalho, não psicologista com os actores.

Claro que se pode fazer muita coisa com tanta matéria - prima. Nós procuramos o Prazer, tentamos descobrir os diversos ritmos e respirações de cada cena. Perceber-lhes o Tempo. E a partir da Palavra procurar os sentidos possíveis e contemporâneos do texto. Com os actores irmos organizando a cena, os espaços, as energias e as tensões.
O objectivo, porque há sempre um objectivo, será conseguir que o público espectador se interrogue e estranhe o texto.

Queria deixar dito os meus profundos agradecimentos às actrizes e aos actores. A todos da CTB e da Escola da Noite, pelo muito trabalho e sobretudo pela disponibilidade. Um beijo especial ao Rogério, à Sofia e à João. E ao Rui Anahory, que 20 e tal anos depois embarca de novo. E a todos e a todas que contribuíram para este espectáculo.

rui madeira

* este espectáculo é uma homenagem do encenador à Memória do Homem dr. Fernando Valle, republicano e Tudo.

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